Hoje em dia a palavra “clássico” já não tem o mesmo peso que outrora. Muitas obras recentes e de qualidade mediana ou apenas um pouco acima da média são frequentemente incluídas no panteão dos clássicos pela maioria das pessoas e mídia especializada. Mas façamos justiça: Se há uma obra do Homem-Aranha que merece levar esse título, esta obra é “A Última Caçada de Kraven”.
Magistralmente escrita por J. M. DeMatteis e desenhada por Mike Zeck, a história foi publicada originalmente em 1987 nos 3 títulos mensais do aracnídeo da Marvel, em 6 edições no total. A história narra, como o título sugere, os últimos dias de Kraven como caçador, decidindo que depois de ser constantemente humilhado pelo cabeça de teia por todo esse tempo, ele irá finalmente realizar sua vingança: Capturar o Homem-Aranha, a única criatura a escapar das mãos de Kraven, o Caçador. Mas para tal façanha, Kraven precisa não apenas superar o escalador de paredes, mas superar a si próprio. E a maneira como ele faz isso é entrando em sintonia com sua presa, transformando-se nela, ao mesmo tempo que a supera, ou em outra palavras, se tornando um Homem-Aranha superior! (é, e você achando que esse lance do Dr. Octopus assumindo a identidade do teioso era algo super original…).

Kraven, o primeiro Homem-Aranha superior!
O que torna essa HQ uma obra especial é que, não apenas a premissa é boa, como a execução foi realizada de maneira espetacular. Nos tempos de hoje, onde as melhores histórias sempre envolvem um grande crossover entre os maiores heróis de uma editora, com uma trama que envolve a salvação de todo o mundo (ou até do universo), pode ser que um leitor mais novo estranhe uma história autocontida, mas é justamente esta característica que dá o tom à história: ela é como um conto do Aranha. Ou um conto do Kraven, depende do ponto de vista. E o termo “conto” é muito bem apropriado, justamente devido às referências e influências que esta obra tem da literatura clássica. O título original pensado por DeMatteis era “Terrível Simetria”, que vem do título de um poema homônimo do poeta inglês Willian Blake. Os primeiros versos do poema aparecem no início e no final da história, de maneira adaptada. Outra fonte de inspiração foi o escritor russo Fiódor Dostoievski, autor de Crime e Castigo. Segundo o prório DeMatteis, “nenhum outro romancista explorou a atordoante dualidade da existência, iluminou as alturas místicas e as desprezíveis profundezas do coração humano com o brilhantismo de Dostoievski”.
O primeiro contato que tive com esta obra foi ainda na década de 90, poucos anos depois de seu lançamento aqui no Brasil. Eu ainda era um infante, e talvez por isso mesmo que a revista tenha me chamado tanta atenção. Era algo diferente do que eu via nas outras revistas de super-heróis. Logo em sua capa podíamos ver um Homem-Aranha saindo do túmulo, com seu uniforme negro (resquícios das histórias do simbionte, pós guerras secretas), em uma noite tenebrosa e debaixo de uma chuva torrencial. Não parecia em nada com as histórias do Homem-Aranha de que eu estava acostumado, e somente anos mais tarde fui descobrir que eu estava certo quanto a isso. Realmente esta foi uma história pensada para outros personagens. Originalmente DeMatteis pensou nela tendo como protagonista o Magnum, um herói pouco conhecido da Marvel. Tendo seu roteiro recusado pelo editor Tom DeFalco, DeMatteis tentou vender esta ideia para a DC como sendo uma história do Batman. E é fácil notar como o clima da história se encaixaria facilmente no universo do morcego. Mas a DC tinha outros planos que envolviam Batman, o Coringa e um jovem escritor chamado Alan Moore (projeto que acabou se tornando “A Piada Mortal”). Então, quando DeMatteis assumiu as mensais do cabeça de teia na Marvel ele retirou o roteiro da gaveta, e felizmente criou esta obra da qual hoje podemos chamar certamente de clássico.

É… parece que o jogo virou não é mesmo???
A Última Caçada de Kraven é uma obra com um teor mais adulto, que veio junto da leva de títulos do final dos anos 80 com este mesmo viés como Cavaleiro das Trevas, Watchmen e Sandman, porém não é tão badalada quanto estes. O que não a torna pior nem melhor, mas igualmente interessante quando pensamos em termos de influência na evolução da forma de se contar histórias por narrativas gráficas. Se você se interessa pela nona arte e ainda não leu esta obra, é melhor começar a pensar em como obter esta joia. Sua versão mais recente saiu pela editora Salvat, na famigerada coleção da capa preta. No Brasil ela saiu originalmente pela Abril, numa minissérie em 3 edições em formato americano (em uma época que as mensais saíam apenas em “formatinho”). Ambas as versões podem ser facilmente encontradas no Mercado Livre, embora por um preço bem acima do praticado normalmente. Caso encontre alguma pelo sebo de sua cidade, não marque bobeira, agarre-a na primeira oportunidade. Esta é uma presa pelo qual vale a pena a caçada…
Ficha Técnica
A Última Caçada de Kraven
Lançamento: 1987 (EUA), 2013 (Brasil, republicação)
Editora: Salvat
Roteiro: J. M. DeMatteis
Arte: Mike Zeck
Arte-final: Bob McLeod
Acabamento: Lombada quadrada, Capa dura
Miolo: Formato 17 × 26 cm, papel couché, 168 páginas (colorido)
Preço de capa: R$ 32,90
* João Gabriel é estudante de Letras, aluno-pesquisador de iniciação científica sobre Análise do Discurso em HQs, curioso sobre tudo que envolve a industria cultural, e tem o sonho de um dia poder viver apenas como educador, fomentando a leitura crítica de obras da cultura pop em geral (mas por enquanto paga suas contas trabalhando com TI mesmo).
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